Pe. António Vieira
Pregado em São Luís do Maranhão, a 13 de Junho de 1654, três dias antes de
se embarcar ocultamente para o Reino. Revela fina ironia, riqueza nas sugestões
alegóricas e agudo senso de observação sobre os vícios e vaidades do Homem,
comparando-o através de alegorias, aos peixes.
Critica a prepotência dos grandes que, como peixes, vivem do sacrifício de
muitos pequenos, os quais "engolem" e "devoram". O alvo são
os colonos do Maranhão, que no Brasil são grandes, mas em Portugal "acham
outros maiores que os comam, também, a eles."
Censura os soberbos (roncadores), os pregadores (parasitas); os ambiciosos (voadores);
os hipócritas e traidores (polvos).
"O polvo com aquele seu cabelo na cabeça, parece um monge; com aqueles
seus ralos estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha,
parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo dessa aparência tão
modesta ou dessa hipocrisia tão santa, testemunham constantemente (...) que o
dito polvo é o maior traidor do mar."
É muito conhecido o
exórdio deste sermão, que permite estabelecer a unidade e a circularidade
do argumento, que volta sempre o ponto inicial, o conceito predicável: "Vós sois o sal da
terra", Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3.
I
Vós, diz
Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e
chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O
efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como
está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual
pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a
terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não
pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os
ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é
porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou
porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que
eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores
se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os
ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto
verdade? Ainda mal!
Suposto,
pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de
fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal
que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo
salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab
hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à
doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil
para que seja pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo
Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência
e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim
é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a
palavra ou com a vida prega o contrário.
Isto é o
que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que
se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho;
mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que
hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.
Pregava
Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram
muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não
fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco
para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do
grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro
lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns
pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo?
Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria
porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que
ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou
somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças,
vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes:
Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do
Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas,
começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos
todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles
ouviam.
Se a
Igreja quer que preguemos de Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos
estis sal terrae: É muito bom texto para os outros santos doutores; mas
para Santo António vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da Igreja
foram sal da terra; Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o
assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no
pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar
deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja tem tido
nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino, que é força
segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de
manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito
sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra
para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido
desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o
sabeis e eu por vós o sinto.
Isto
suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e
já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que
bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria,
quer dizer, Domina maris: «Senhora do mar»; e posto que o assunto
seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave
Maria.
II
Enfim,
que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os
peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera
desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de
converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não
sente. Por esta causa mão falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos
triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre
à lembrança destes dois fins.
Vos estis
sal terrae. Haveis
de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas
propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e
preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as
pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as de todos
os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o
conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence
só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o grande
Doutor da Igreja S. Basílio: Non carpere solum, reprehendereque
possumus pisces, sed sunt in illis, et quae prosequenda sunt imitatione:
«Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também
que imitar e louvar.» Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar, Sagenae
missae in mare, diz que os pescadores «recolheram os peixes bons e lançaram
fora os maus»: Elegerunt bonos in vasa, malos autem foras miserunt.
E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que
procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro
louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos
vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está
ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.
Começando
pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer que entre
todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus
criou. A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais
da terra e a vós primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o
domínio de todos os animais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou
com estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesit
piscibus maris et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae. Entre
todos os animais do Mundo, os peixes são os mais e os peixes os maiores. Que
comparação têm em número as espécies das aves e as dos animais terrestres com
as dos peixes? Que comparação na grandeza o elefante com a baleia? Por isso
Moisés, cronista da criação, calando os nomes de todos os animais, só a ela
nomeou pelo seu: Creavit Deus cete grandia. E os três músicos da
fornalha da Babilónia o cantaram também como singular entre todos: Benedicite,
cete et omnia quae moventur in aquis, Domino. Estes e outros louvores,
estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó
peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é
também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.
Vindo
pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro
louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência com
que, chamados, acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela
ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu
servo António. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes e grande afronta
e confusão para os homens! Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar
da terra e ainda do Mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios,
porque lhes não queria falar à vontade e condescender com seus erros, e no
mesmo tempo os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos e
suspensos às suas palavras, escutando com silêncio e com sinais de admiração e assenso
(como se tiveram entendimento) o que não entendiam. Quem olhasse neste passo
para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados
e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia
cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens
não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos
peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso
sem a razão.
Muito
louvor mereceis, peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos
pregadores da palavra de Deus, e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que
assim o fizestes. Ia Jonas, pregador do mesmo Deus, embarcado em um navio,
quando se levantou aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como
o trataram os peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o
peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse
aqueles homens. É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens
lançam ao mar os ministros da salvação?! Vede, peixes, e não vos venha
vanglória, quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas para
deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar
vivo à terra.
Mas porque
nestas duas acções teve maior parte a omnipotência que a natureza (como também
em todas as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e
próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos
os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão
doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão
lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos
animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem connosco, o papagaio nos
fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes
aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o
sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se
mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão
grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores
comummente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou
demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes
louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza,
era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato
e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem
ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem.
Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o
papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes;
faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer
um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem
formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo
carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da
espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no
bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós,
peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim,
mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de toda
esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não
tendes memória.
No tempo
de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o Mundo, e de todos os animais
quais livraram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos
outros animais da terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das
outras aves. E dos peixes? Todos escaparam, antes não só escaparam todos, mas
ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois
se morreram naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as
aves, porque mão morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio:
porque os outros animais, como mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais
comunicação com os homens, os peixes viviam longe e retirados deles. Facilmente
pudera Deus fazer que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes,
assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força
daquelas ervas com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata;
mas como o dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens por seus
pecados, e ao Mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da
divina Justiça que nele houvesse esta diversidade ou distinção, para que o
mesmo Mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o mal; e que por
isso os animais que viviam mais perto deles, foram também castigados e os que
andavam longe ficaram livres.
Vede,
peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande
filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque
tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo António – e foi este
um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador – bem vos pudera
alegar consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens.
Para fugir dos homens deixou a casa de seus pais e se recolheu a uma religião,
onde professasse perpétua clausura. E porque nem aqui o deixavam os que ele
tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal.
Para fugir e se esconder dos homens mudou o hábito, mudou o nome, e até a si
mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota,
com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe
sucedeu com seus próprios irmãos no capítulo geral de Assis. De ali se retirou
a fazer vida solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus como por força
o não manifestara e por fim acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido
com Deus, quanto mais apartado dos homens.
III
Este é,
peixes, em comum o natural que em todos vós louvo, e a felicidade de que vos
dou o parabém, não sem inveja. Descendo ao particular, infinita matéria fora se
houvera de discorrer pelas virtudes de que o Autor da natureza a dotou e fez
admirável em cada um de vós. De alguns somente farei menção. E o que tem o
primeiro lugar entre todos, como tão celebrado na Escritura, é aquele santo
peixe de Tobias a quem o texto sagrado não dá outro nome que de grande, como
verdadeiramente o foi nas virtudes interiores, em que só consiste a verdadeira
grandeza. Ia Tobias caminhando com o anjo S. Rafael, que o acompanhava, e
descendo a lavar os pés do pó do caminho nas margens de um rio, eis que o
investe um grande peixe com a boca aberta em acção de que o queria tragar.
Gritou Tobias assombrado, mas o anjo lhe disse que pegasse no peixe pela
barbatana e o arrastasse para terra; que o abrisse e lhe tirasse as entranhas e
as guardasse, porque lhe haviam de servir muito. Fê-lo assim Tobias, e
perguntando que virtude tinham as entranhas daquele peixe que lhe mandara
guardar, respondeu o anjo que o fel era bom para sarar da cegueira e o coração
para lançar fora os demónios: Cordis eius particulam, si super carbones
ponas, fumus eius extricat omne genus daemoniorum: et fel valet ad ungendos
oculos, in quibus fuerit albugo, et sanabuntur. Assim o disse o anjo, e
assim o mostrou logo a experiência, porque, sendo o pai de Tobias cego,
aplicando-lhe o filho aos olhos um pequeno do fel, cobrou inteiramente a vista;
e tendo um demónio, chamado Asmodeu, morto sete maridos a Sara, casou com ela o
mesmo Tobias; e queimando na casa parte do coração, fugiu dali o Demónio e
nunca mais tornou. De sorte que o fel daquele peixe tirou a cegueira a Tobias,
o velho, e lançou os demónios de casa a Tobias, o moço. Um peixe de tão bom
coração e de tão proveitoso fel, quem o não louvará mais? Certo que se a este
peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo
de Santo António.
Abria
Santo António a boca contra os hereges, e enviava-se a eles, levado do fervor e
zelo da fé e glória divina. E eles que faziam? Gritavam como Tobias e assombravam-se
com aquele homem e cuidavam que os queria comer. Ah homens, se houvesse um anjo
que vos revelasse qual é o coração desse homem e esse fel que tanto vos amarga,
quão proveitoso e quão necessário vos é! Se vós lhe abrísseis esse peito e lhe
vísseis as entranhas, como é certo que havíeis de achar e conhecer claramente
nelas que só duas cousas pretende de vós, e convosco: uma é alumiar e curar
vossas cegueiras, e outra lançar-vos os demónios fora de casa.
Pois a
quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer livrar dos demónios perseguis
vós?! Só uma diferença havia entre Santo António e aquele peixe: que o peixe
abriu a boca contra quem se lavava, e Santo António abria a sua contra os que
se não queriam lavar.
Ah
moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera agora dizer neste caso! Abri, abri
estas entranhas; vede, vede este coração. Mas ah sim, que me não lembrava! Eu
não vos prego a vós, prego aos peixes.
Passando
dos da Escritura aos da história natural, quem haverá que não louve e admire
muito a virtude tão celebrada da rémora? No dia de um santo menor, os peixes
menores devem preferir aos outros. Quem haverá, digo, que não admire a virtude
daquele peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder, que
não sendo maior de um palmo, se se pega ao leme de uma nau da Índia, apesar das
velas e dos ventos, e de seu próprio peso e grandeza, a prende e amarra mais
que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante? Oh se houvera uma
rémora na terra, que tivesse tanta força como a do mar, que menos perigos
haveria na vida e que menos naufrágios no Mundo!
Se alguma
rémora houve na terra, foi a língua de Santo António, na qual, como na rémora,
se verifica o verso de São Gregório Nazianzeno: Lingua quidem parva
est, sed viribus omnia vincit. O Apóstolo Santiago, naquela sua
eloquentíssima Epístola, compara a língua ao leme da nau e ao freio do cavalo.
Uma e outra comparação juntas declaram maravilhosamente a virtude da rémora, a
qual, pegada ao leme da nau, é freio da nau e leme do leme. E tal foi a virtude
e força da língua de Santo António. O leme da natureza humana é o alvedrio, o
piloto é a razão: mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos
precipitados do alvedrio? Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde,
mostrou a língua de António quanta força tinha, como rémora, para domar a fúria
das paixões humanas. Quantos, correndo fortuna na nau Soberba, com as velas
inchadas do vento e da mesma soberba (que também é vento), se iam desfazer nos
baixos, que já rebentavam por proa, se a língua de António, como rémora, não
tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem, como mandava a razão, e
cessasse a tempestade de fora e a de dentro? Quantos, embarcados na nau
Vingança, com a artilharia abocada e os botafogos acesos, corriam infunados a
dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique se a rémora da língua
de António lhes dão detivesse a fúria, até que, composta a ira e ódio, com
bandeiras de paz se salvassem amigavelmente? Quantos, navegando na nau Cobiça,
sobrecarregada até às gáveas e aberta com o peso por todas as costuras, incapaz
de fugir, nem se defender, dariam nas mãos dos corsários com perda do que
levavam e do que iam buscar, se a língua de António os não fizesse parar, como
rémora, até que, aliviados da carga injusta, escapassem do perigo e tomassem
porto? Quantos, na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de
dia, nem estrelas de noite, enganados do canto das sereias e deixando-se levar
da corrente, se iriam perder cegamente, ou em Sila, ou em Caribdes, onde não
aparecesse navio nem navegante, se a rémora da língua de António os não
contivesse, até que esclarecesse a luz e se pusessem em vista.
Esta é a
língua, peixes, do vosso grande pregador, que também foi rémora vossa, enquanto
o ouvistes; e porque agora está muda (posto que ainda se conserva inteira) se
vêem e choram na terra tantos naufrágios.
Mas para
que da admiração de uma tão grande virtude vossa, passemos ao louvor ou inveja
de outra não menor, admirável é igualmente a qualidade daquele outro
peixezinho, a que os latinos chamaram torpedo. Ambos estes peixes conhecemos cá
mais de fama que de vista; mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são
maiores, mais se escondem. Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo
e a bóia sobre a água, e em lhe picando na isca o torpedo começa a lhe tremer o
braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável efeito? De maneira que,
num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha,
da linha à cana e da cana ao braço do pescador.Com muita razão disse que este
vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem dera aos pescadores do nosso
elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente, em tudo o que pescam na
terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que
pesquem tanto e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer!
Pudera-se
fazer problema; onde há mais pescadores e mais modos e traças de pescar, se no
mar ou na terra? E é certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda
que fora grande consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana,
pois é o instrumento do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra, as
varas, (e tanta sorte de varas); pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam
os bastões e até os ceptros pescam, e pescam mais que todos, porque pescam
cidades e reinos inteiros. Pois é possível que, pescando os homens cousas de
tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?! Se eu pregara aos homens e tivera
a língua de Santo António, eu os fizera tremer.
Vinte e
dois pescadores destes se acharam acaso a um sermão de Santo António, e às
palavras do Santo os fizeram tremer a todos de sorte que todos, tremendo, se
lançaram a seus pés; todos, tremendo, confessaram seus furtos; todos, tremendo,
restituíram o que podiam (que isto é o que faz tremer mais neste pecado que nos
outros); todos enfim mudaram de vida e de ofício e se emendaram.
Quero
acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixes com um, que não sei se
foi ouvinte de Santo António e aprendeu dele a pregar. A verdade é que me
pregou a mim, e se eu fora outro, também me convertera. Navegando de aqui para
o Pará (que é bem não fiquem de fora os peixes da nossa costa), vi correr pela
tona da água de quando em quando, a saltos, um cardume de peixinhos que não
conhecia; e como me dissessem que os Portugueses lhe chamavam quatro-olhos,
quis averiguar ocularmente a razão deste nome, e achei que verdadeiramente têm
quatro olhos, em tudo cabais e perfeitos. Dá graças a Deus, lhe disse, e louva
a liberalidade de sua divina providência para contigo; pois às águias, que são
os linces do ar, deu somente dois olhos, e aos linces, que são as águias da
terra, também dois; e a ti, peixezinho, quatro.
Mais me
admirei ainda, considerando nesta maravilha a circunstância do lugar. Tantos
instrumentos de vista a um bichinho do mar, nas praias daquelas mesmas terras
vastíssimas, onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares
de gentes há tantos séculos! Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de
Deus, e quão profundo o abismo de seus juízos!
Filosofando,
pois, sobre a causa natural desta providência, notei que aqueles quatro olhos
estão lançados um pouco fora do lugar ordinário, e cada par deles, unidos como
os dois vidros de um relógio de areia, em tal forma que os da parte superior
olham direitamente para cima, e os da parte inferior direitamente para baixo. E
a razão desta nova arquitectura, é porque estes peixinhos, que sempre andam na
superfície da água, não só são perseguidos dos outros peixes maiores do mar,
senão também de grande quantidade de aves marítimas, que vivem naquelas praias;
e como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as
sentinelas e deu-lhes dois alhos, que direitamente olhassem para cima, para se
vigiarem das aves, e outros dois que direitamente olhassem para baixo, para se
vigiarem dos peixes.
Oh que
bem informara estes quatro olhos uma alma racional, e que bem empregada fora
neles, melhor que em muitos homens! Esta é a pregação que me fez aquele
peixezinho, ensinando-me que, se tenho fé e uso da razão, só devo olhar
direitamente para cima, e só direitamente para baixo: para cima, considerando
que há Céu, e para baixo, lembrando-me que há Inferno. Não me alegou para isso
passo da Escritura; mas então me ensinou o que quis dizer David em um, que eu
não entendia: Averte oculos meos, ne videant vanitatem. «Voltai-me,
Senhor, os olhos, para que não vejam a vaidade.»
Pois
David não podia voltar os seus olhos para onde quisesse?! Do modo que ele
queria, não. Ele queria voltados os seus olhos, de modo que não vissem a
vaidade, e isto não o podia fazer neste Mundo, para qualquer parte que voltasse
os olhos, porque neste Mundo «tudo é vaidade»: Vanitas vanitatum et
omnia vanitas. Logo, para não verem os olhos de David a vaidade, havia-lhos
de voltar Deus de modo que só vissem e olhassem para o outro Mundo em ambos
seus hemisférios; ou para o de cima, olhando direitamente só para o Céu, ou
para o de baixo, olhando direitamente só para o Inferno. E esta é a mercê que
pedia a Deus aquele grande profeta, e esta a doutrina que me pregou aquele
peixezinho tão pequeno.
Mas ainda
que o Céu e o Inferno se não fez para vós, irmãos peixes, acabo, e dou fim a
vossos louvores, com vos dar as graças do muito que ajudais a ir ao Céu, e não
ao Inferno, os que se sustentam de vós. Vós sois os que sustentais as Cartuxas
e os Buçacos, e todas as santas famílias, que professam mais rigorosa
austeridade; vós os que a todos os verdadeiros cristãos ajudais a levar a
penitência das quaresmas; vós aqueles com que o mesmo Cristo festejou a Páscoa
as duas vezes que comeu com seus discípulos depois de ressuscitado. Prezem-se
as aves e os animais terrestres de fazer esplêndidos e custosos os banquetes
dos ricos, e vós gloriai-vos de ser companheiros do jejum e da abstinência dos
justos! Tendes todos quantos sois tanto parentesco e simpatia com a virtude,
que, proibindo Deus no jejum a pior e mais grosseira carne, concede o melhor e
mais delicado peixe. E posto que na semana só dois se chamam vossos, nenhum dia
vos é vedado. Um só lugar vos deram os astrólogos entre os signos celestes, mas
os que só de vós se mantêm na terra, são os que têm mais seguros os lugares do
Céu. Enfim, sois criaturas daquele elemento, cuja fecundidade entre todos é
própria do Espírito Santo: Spiritus Domini foecundabat aquas.
Deitou-vos
Deus a bênção, que crescêsseis e multiplicásseis; e para que o Senhor vos
confirme essa bênção, lembrai-vos de não faltar aos pobres com o seu remédio.
Entendei que no sustento dos pobres tendes seguros os vossos aumentos. Tomai o
exemplo nas irmãs sardinhas. Porque cuidais que as multiplica o Criador em
número tão inumerável? Porque são sustento de pobres. Os solhos e os salmões
são muito contados, porque servem à mesa dos reis e dos poderosos; mas o peixe
que sustenta a fome dos pobres de Cristo, o mesmo Cristo os multiplica e
aumenta. Aqueles dois peixes companheiros dos cinco pães do deserto,
multiplicaram tanto, que deram de comer a cinco mil homens. Pois se peixes
mortos, que sustentam os pobres, multiplicam tanto, quanto mais e melhor o
farão os vivos! Crescei, peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos confirme a
sua bênção.
IV
Antes,
porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora
as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A
primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos
outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só
vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo
contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande
para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem
pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines
pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se
devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os
peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas
da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da
mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho,
que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho
nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável
é, quero que o vejais nos homens.
Olhai,
peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais
os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que
haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior
açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir,
vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas;
vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem
quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como
hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos
sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os
testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os
oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou
ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma
mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa;
come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o
levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem
comido toda a terra.
Já se os
homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos
matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade,
considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo
estava Job, quando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis
saturamini? «Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais
comendo vivo e fartando-vos da minha carne?» Quereis ver um Job destes?
Vede um
homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai
quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o
escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o
a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido.
São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os
corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está
executado nem sentenciado, e já está comido.
E para
que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos modos
com que vós comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: Nonne
cognoscent omnes, qui operantur iniquitatem, qui devorunt plebem meam, ut cibum
panis? «Cuidais, diz Deus, que não há-de vir tempo em que conheçam e paguem
o seu merecido aqueles que cometem a maldade?» E que maldade é esta, à qual
Deus singularmente chama maldade, como se não houvera outra no Mundo? E quem
são aqueles que a cometem? A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e
os que a cometem são os maiores, que comem os pequenos: Qui devorant
plebem meam, ut cibum panis.
Nestas
palavras, pelo que vos toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas
cousas, quantas são as mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens não só o
seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a
plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos
avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de
qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant.
Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta
a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram
e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que
modo os devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros
comeres, senão como pão.
A
diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias
de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no
ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se
come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e
assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os
miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em
que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e
devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.
Parece-vos
bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos
dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e
pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é
o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os
comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença
de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como
também fazem os homens.
Se
cuidais, porventura, que estas injustiças entre vós se toleram e passam sem
castigo, enganais-vos. Assim como Deus as castiga nos homens, assim também por
seu modo as castiga em vós. Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes,
bem vistes neste Estado, e quando menos ouviríeis murmurar aos passageiros nas
canoas, e muito mais lamentar aos miseráveis remeiros delas, que os maiores que
cá foram mandados, em vez de governar e aumentar o mesmo Estado, o destruíram;
porque toda a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os
pequenos.
Assim
foi; mas, se entre vós se acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos
navios, vão com eles a Portugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam
estes lá no Tejo que esses mesmos maiores que cá comiam os pequenos, quando lá
chegam, acham outros maiores que os comam também a eles. Este é o estilo da
divina justiça tão antigo e manifesto, que até os Gentios o conheceram e
celebraram:
Vos
quibus rector maris, atque terrae
Ius dedit
magnum necis, atque vitae;
Ponite
inflatos, tumidosque vultus;
Quidquid
a vobis minor extimescit,
Maior hoc
vobis dominus minatur.
Notai,
peixes, aquela definição de Deus: Rector maris atque terrae:
«Governador do mar e da terra»; para que não duvideis que o mesmo estilo que
Deus guarda com homens na terra, observa também convosco no mar. Necessário é
logo que olheis por vós e que não façais pouco caso da doutrina que vos deu o
grande Doutor da Igreja Santo Ambrósio, quando, falando convosco, disse: Cave
nedum alium insequeris, incidas in validiorem: «Guarde-se o peixe que
persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte», que o
engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo atrás do bagre,
como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com
quatro ordens de dentes, que o há-de engolir de um bocado. E o que com maior
elegância vos disse também Santo Agostinho: Praedo minoris fit praeda
maioris. Mas não bastam, peixes, estes exemplos para que acabe de se
persuadir a vossa gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos tem já
aparelhado o castigo na voracidade dos grandes?
Já que
assim o experimentais com tanto dano vosso, importa que de aqui por diante
sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o
apetite particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a
muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bastam
tantos inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes,
quantos são os pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de vos pôr em
cerco e fazer guerra por tantos modos?! Não vedes que contra vós se emalham e
entralham as redes, contra vós se tecem as nassas, contra vós se torcem as
linhas, contra vós se dobram e farpam os anzóis, contra vós as fisgas e os
arpões? Não vedes que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas
ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos de
fora, senão que também vós de vossas portas a dentro o haveis de ser mais
cruéis, perseguindo-vos com uma guerra mais que civil e comendo-vos uns aos
outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão
perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das
obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito
amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois
continuai assim, e sereis felizes.
Dir-me-eis
(como também dizem os homens) que não tendes outro modo de vos sustentar. E de
que se sustentam entre vós muitos que não comem os outros? O mar é muito largo,
muito fértil, muito abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar
grande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é
voracidade e sevícia, e não estatuto da natureza. Os da terra e do ar, que hoje
se comem, no princípio do Mundo não se comiam, sendo assim conveniente e
necessário para que as espécies se multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais
claramente) depois do dilúvio, porque, tendo escapado somente dois de cada
espécie, mal se podiam conservar, se se comessem. E finalmente no tempo do
mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na arca, o lobo estava vendo
o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se
costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se
acomodaram com a ração do paiol comum que Noé lhes repartia. Pois se os animais
dos outros elementos mais cálidos foram capazes desta temperança, porque o não
serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da
própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós
também; ou fazei a virtude sem necessidade e será maior virtude.
Outra
cousa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de
vós é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens
experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol,
ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por
um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e
fica preso e boqueando, até que, assim suspenso no ar, ou lançado no convés,
acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta?
Enganados por um retalho de pano, perder a vida?
Dir-me-eis
que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra
outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das
espadas, e porquê? Porque houve quem os engodou e lhes fez isca com dois
retalhos de pano. A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais
facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isco na ponta desses
piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se
chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis. ou vermelho, que se
chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho
de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois que sucede?
O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião ficou
morto; e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar
outros.
Por este
exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me
parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no
Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos, nem esta ambição
de hábitos.
Mas nem
por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo
engano, menos honrada e mais ignoradamente. Quem pesca as vidas a todos os
homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um
mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e
quatro sedas, que já se lhes passou a era e não têm gasto; e que faz? Isca com
aqueles trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes uma sacadela e dá-lhes
outra, com que cada vez lhes sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que querem
parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com
dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra, e lá vai a
vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou
na cana, ou no engenho, ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o
leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os
escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas
nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai e despende toda a vida? No
triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.
Não é
isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está
que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por
dois retalhos de pano, quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu
do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de
escamas prateadas e doiradas, vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o
tempo, nem se variam ou podem variar com as modas; não é maior ignorância e
maior cegueira deixardes-vos enganar ou deixardes-vos tomar pelo beiço com duas
tirinhas de pano? Vede o vosso Santo António, que pouco o pode enganar o Mundo
com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade
tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego regrante;
e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa
aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela
corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram
sisudos.
V
Descendo
ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E
começando aqui pela nossa costa: no mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os
roncadores e vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso como a ira. É
possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do
mar?! Se, com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um
aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me:
o espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada,
tem pouca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer
roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito
roncam. S. Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa
espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de soldados romanos; e se
Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos prometo que havia de cortar mais
orelhas que a de Malco. Contudo, que lhe sucedeu naquela mesma noite? Tinha
roncado e barbateado Pedro que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser
constante até morrer se fosse necessário; e foi tanto pelo contrário, que só
ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer
tremer e negar. Antes disso já tinha fraqueado na mesma hora em que prometeu
tanto de si. Disse-lhe Cristo no horto que vigiasse, e vindo de aí a pouco a
ver se o fazia, achou-o dormindo com tal descuido, que não só o acordou do
sono, senão também do que tinha blasonado: Sic non potuisti una hora
vigilare mecum? Vós, Pedro, sois o valente que havíeis de morrer por mim,
«e não pudestes uma hora vigiar comigo»? Pouco há, tanto roncar, e agora tanto
dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir
nela. Pois que vos parece, irmãos roncadores? Se isto sucedeu ao maior
pescador, que pode acontecer ao menor peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco
fundamento tendes de blasonar, nem roncar.
Se as
baleias roncaram, tinha mais desculpa a sua arrogância na sua grandeza. Mas
ainda nas mesmas baleias não seria essa arrogância segura. O que é a baleia
entre os peixes, era o gigante Golias entre os homens. Se o rio Jordão e o mar
de Tiberíades têm comunicação com o Oceano, como devem ter, pois dele manam
todos, bem deveis de saber que este gigante era a ronca dos Filisteus. Quarenta
dias contínuos esteve armado no campo, desafiando a todos os arraiais de
Israel, sem haver quem se lhe atrevesse; e no cabo, que fim teve toda aquela
arrogância? Bastou um pastorzinho com um cajado e uma funda, para dar com ele
em terra. Os arrogantes e soberbos tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus,
sempre fica debaixo. Assim que, amigos roncadores, o verdadeiro conselho é
calar e imitar a Santo António. Duas cousas há nos homens, que os costumam
fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder. Caifás roncava de
saber: Vos nescitis quidquam. Pilatos roncava de poder: Nescis
quia potestatem habeo? E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de Cristo,
António, tendo tanto saber, como já vos disse, e tanto poder, como vós mesmos
experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder,
quanto mais blasonar disso. E porque tanto calou, por isso deu tamanho brado.
Nesta
viagem, de que fiz menção, e em todas as que passei a Linha Equinocial, vi
debaixo dela o que muitas vezes tinha visto e notado nos homens, e me admirou
que se houvesse estendido esta ronha e pegado também aos peixes. Pegadores se
chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo
pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos
costados. que jamais os desferram. De alguns animais de menos força e indústria
se conta que vão seguindo de longe aos leões na caça, para se sustentarem do
que a eles sobeja. O mesmo fazem estes pegadores, tão seguros ao perto como
aqueles ao longe; porque o peixe grande não pode dobrar a cabeça, nem voltar a
boca sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e mais a fome.
Este modo
de vida, mais astuto que generoso, se acaso se passou e pegou de um elemento a
outro, sem dúvida que o aprenderam os peixes do alto, depois que os nossos
Portugueses o navegaram; porque não parte vice-rei ou governador para as
Conquistas, que não vá rodeado de pegadores, os quais se arrimam a eles, para
que cá lhes matem a fome, de que lá não tinham remédio. Os menos ignorantes,
desenganados da experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os
que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suceder
no fim o que aos pegadores do mar.
Rodeia a
nau o tubarão nas calmarias da Linha com os seus pegadores às costas, tão
cerzidos com a pele, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os
hóspedes ou companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro
soldados, arremessa-se furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica
preso. Corre meia companha a alá-lo acima, bate fortemente o convés com os
últimos arrancos; enfim, morre o tubarão, e morrem com ele os pegadores.
Parece-me
que estou ouvindo a S. Mateus, sem ser apóstolo pescador, descrevendo isto
mesmo na terra. Morto Herodes, diz o Evangelista, apareceu o Anjo a José no
Egipto, e disse-lhe que já se podia tornar para a pátria, porque «eram mortos
todos aqueles que queriam tirar a vida ao Menino»: Defuncti sunt enim
qui quaerebant animam Pueri. Os que queriam tirar a vida a Cristo menino,
eram Herodes e todos os seus, toda a sua família, todos os seus aderentes,
todos os que seguiam e pendiam da sua fortuna. Pois é possível que todos estes
morressem juntamente com Herodes?! Sim: porque em morrendo o tubarão, morrem
também com ele os pegadores: Defuncto Herode, defuncti sunt qui
quaerebant animam Pueri.
Eis aqui,
peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida
que escolhestes. Tomai o exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, nem
seguem, como deveram, o de Santo António.
Deus
também tem os seus pegadores. Um destes era David, que dizia: Mihi
autem adhaerere Deo bonum est. Peguem-se outros aos grandes da terra, que
«eu só me quero pegar a Deus». Assim o fez também Santo António; e senão, olhai
para o mesmo Santo, e vede como está pegado com Cristo e Cristo com ele.
Verdadeiramente se pode duvidar qual dos dois é ali o pegador: e parece que é
Cristo, porque o menor é sempre o que se pega ao maior, e o Senhor fez-se tão
pequenino, para se pegar a António. Mas António também se fez menor, para se
pegar mais a Deus. Daqui se segue, que todos os que se pegam a Deus, que é
imortal, seguros estão de morrer como os outros pegadores. E tão seguros, que
ainda no caso em que Deus se fez homem e morreu, só morreu para que não
morressem todos os que se pegassem a ele: Si ego me
quaeritis, sinite hos abire. «Se me buscais a mim, deixai ir a estes.» E
posto que deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus peixezinhos, não,
ao menos devereis imitar aos outros animais do ar e da terra, que quando se
chegam aos grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que
morram juntamente com eles. Lá diz a Escritura daquela famosa árvore, em que
era significado o grande Nabucodonosor, que todas as aves do céu descansavam
sobre os seus ramos e todos os animais da terra se recolhiam à sua sombra, e uns
e outros se sustentavam de seus frutos: mas também diz que, tanto que foi
cortada esta árvore, as aves voaram e os outros animais fugiram. Chegai-vos
embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que vos mateis por eles,
nem morrais com eles.
Considerai,
pegadores vivos, como morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e
porquê. O tubarão morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram.
Pode haver maior ignorância que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o
tubarão porque comeu, matou-o a sua gula; mas que morra o pegador pelo que não
comeu, é a maior desgraça que se pode imaginar! Não cuidei que também nos
peixes havia pecado original. Nós os homens, fomos tão desgraçados, que outrem
comeu e nós o pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na gulodice de Adão e
Eva; e que hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça! Mas nós
lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de água, e vós não vos podeis lavar da
vossa ignorância com quanta água tem o mar.
Com os
voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me,
voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O
mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar,
e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos não conheceis, olhai para
as vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que não sois aves,
senão peixes, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis, voador, que
vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros de vosso tamanho. Pois porque
tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas?! Mas
ainda mal, porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser
melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino que todos. Aos outros
peixes, do alto mata-os o anzol ou a fisga, a vós sem fisga nem anzol, mata-vos
a vossa presunção e o vosso capricho. Vai o navio navegando e o marinheiro
dormindo, e o voador toca na vela ou na corda, e cai palpitando. Aos outros
peixes mata-os a fome e engana-os a isca; ao voador mata-o a vaidade de voar, e
a sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da quilha e
viver, que voar por cima das entenas e cair morto!
Grande
ambição é que, sendo o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno
todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vedes, peixes, o castigo da
ambição. O voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus
que tenha os perigos de ave e mais os de peixe. Todas as velas para ele são
redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, voador, como correu
pela posta o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com as barbatanas, e
agora jazes em um convés amortalhado nas asas. Não contente com ser peixe,
quiseste ser ave, e já não és ave nem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A
natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao
fogo. Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se o voador não quisera
passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no quarto. Bem seguro estava
ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas,
vieram-se-lhe a queimar as asas.
À vista
deste exemplo, peixes, tomai todos na memória esta sentença: Quem quer mais do
que lhe convém, perde o que quer e o que tem. Quem pode nadar e quer voar,
tempo virá em que não voe nem nade. Ouvi o caso de um voador da terra: Simão
Mago, a quem a arte mágica, na qual era famosíssimo, deu o sobrenome,
fingindo-se que ele era o verdadeiro filho de Deus, sinalou o dia em que aos
olhos de toda Roma havia de subir ao Céu, e com efeito começou a voar mui alto;
porém a oração de S. Pedro, que se achava presente, voou mais depressa que ele,
e caindo lá de cima o mago, não quis Deus que morresse logo, senão que aos
olhos também de todos quebrasse, como quebrou, os pés.
Não quero
que repareis no castigo, se não no género dele Que caia Simão, está muito bem
caído; que morra, também estaria muito bem morto, que o seu atrevimento e a sua
arte diabólica o merecia. Mas que de uma queda tão alta não rebente, nem quebre
a cabeça ou os braços, se não os pés?! Sim, diz S. Máximo, porque quem tem pés
para andar e quer asas para voar, justo é que perca as asas e mais os pés.
Elegantemente o Santo Padre: Ut qui paulo ante volare tentaverat,
subito ambulare non posset; et qui pennas assumpserat, plantas amitteret.
Se Simão tem pés e quer asas, pode andar e quer voar; pois quebrem-se-lhe as
asas para que não voe, e também os pés, para que não ande. Eis aqui, voadores
do mar, o que sucede aos da terra, para que cada um se contente com o seu
elemento. Se o mar tomara exemplo nos rios, depois que Ícaro se afogou no
Danúbio não haveria tantos Ícaros no Oceano.
Oh alma
de António, que só vós tivestes asas e voastes sem perigo, porque soubestes
voar para baixo e não para cima! Já S. João viu no Apocalipse aquela
mulher cujo ornato gastou todas as luzes ao Firmamento, e diz que «lhe foram
dadas duas grandes asas de águia»: Datae sunt mulieri alae duae aquilae
magnae. E para quê? Ut volaret in desertum: «Para voar ao
deserto.» Notável cousa, que não debalde lhe chamou o mesmo Profeta grande
maravilha. Esta mulher estava no Céu: Signum magnum apparauit in caelo,
mulier amicta sole. Pois se a mulher estava no Céu e o deserto na terra,
como lhe dão asas para voar ao deserto? Porque há asas para subir e asas para
descer. As asas para subir são muito perigosas, as asas para descer muito
seguras; e tais foram as de Santo António. Deram-se à alma de Santo António
duas asas de águia, que foi aquela duplicada sabedoria natural e sobrenatural
tão sublime, como sabemos. E ele que fez? Não estendeu as asas para subir,
encolheu-as para descer; e tão encolhidas que, sendo a Arca do Testamento, era
reputado, como já vos disse, por leigo e sem ciência. Voadores do mar (não falo
com os da terra), imitai o vosso santo pregador. Se vos parece que as vossas
barbatanas vos podem servir de asas, não as estendais para subir, porque vos
não suceda encontrar com alguma vela ou algum costado; encolhei-as para descer,
ide-vos meter no fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos,
estareis mais seguros.
Mas já
que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo,
contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo
Ambrósio. O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles
seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha,
parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão
modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois
grandes Doutores da Igreja latina e grega, que o dito polvo é o maior traidor
do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das
mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no
camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula,
no polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na
areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra,
como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui
que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai passando
desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio
engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas?
Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o
prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez
o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi
traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a
muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a
primeira traição e roubo que faz, é a luz, para que não distinga as cores. Vê,
peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é
menos traidor!
Oh que
excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e tão
cristalino como o da água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo céu!
Lá disse o Profeta por encarecimento, que «nas nuvens do ar até a água é
escura»: Tenebrosa aqua in nubibus aeris. E disse nomeadamente nas
nuvens do ar, para atribuir a escuridade ao outro elemento, e não à água; a
qual em seu próprio elemento é sempre clara, diáfana e transparente, em que
nada se pode ocultar, encobrir nem dissimular. E que neste mesmo elemento se
crie, se conserve e se exercite com tanto dano do bem público um monstro tão
dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente
traidor!
Vejo,
peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os vossas
mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas há falsidades,
enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas
traições. E sobre o mesmo sujeito que defendeis, também podereis aplicar aos
semelhantes outra propriedade muito própria; mas pois vós a calais, eu também a
calo. Com grande confusão, porém, vos confesso tudo, e muito mais do que
dizeis, pois não o posso negar. Mas ponde os olhos em António, vosso pregador,
e vereis nele o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade,
onde nunca houve dolo, fingimento ou engano. E sabei também que para haver tudo
isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português, não era necessário
ser santo.
Tenho
acabado, irmãos peixes, os vossos louvores e repreensões, e satisfeito, como
vos prometi, às duas obrigações do sal, posto que do mar, e não da terra: Vos
estis sal terrae. Só resta fazer-vos uma advertência muito necessária, para
os que viveis nestes mares. Como eles são tão esparcelados e cheios de baixios,
bem sabeis que se perdem e dão à costa muitos navios, com que se enriquece o
mar e a terra se empobrece. Importa, pois, que advirtais, que nesta mesma
riqueza tendes um grande perigo, porque todos os que se aproveitam dos bens dos
naufragantes, ficam excomungados e malditos.
Esta pena
de excomunhão, que é gravíssima, não se pôs a vós senão aos homens, mas tem
mostrado Deus por muitas vezes, que quando os animais cometem materialmente o
que é proibido por esta lei, também eles incorrem, por seu modo, nas penas
dela, e no mesmo ponto começam a definhar, até que acabam miseravelmente.
Mandou
Cristo a S. Pedro que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe que
tomasse, acharia uma moeda, com que pagar certo tributo. Se Pedro havia de
tomar mais peixe que este, suposto que ele era o primeiro, do preço dele e dos
outros podia fazer o dinheiro com que pagar aquele tributo, que era de uma só
moeda de prata, e de pouco peso. Com que mistério manda logo o Senhor que se
tire da boca deste peixe e que seja ele o que morra primeiro que os demais?
Ora estai
atentos. Os peixes não batem moeda no fundo do mar, nem têm contratos com os
homens, donde lhes possa vir dinheiro; logo, a moeda que este peixe tinha
engolido, era de algum navio que fizera naufrágio naqueles mares. E quis
mostrar o Senhor que as penas que S. Pedro ou seus sucessores fulminam contra
os homens que tomam os bens dos naufragantes, também os peixes por seu modo as
incorrem morrendo primeiro que os outros, e com o mesmo dinheiro que engoliram
atravessado na garganta.
Oh que
boa doutrina era esta para a terra, se eu não pregara para o mar! Para os
homens não há mais miserável morte, que morrer com o alheio atravessado na
garganta; porque é pecado de que o mesmo S. Pedro e o mesmo Sumo Pontífice não
pode absolver. E posto que os homens incorrem a morte eterna, de que não são
capazes os peixes, eles contudo apressam a sua temporal, como neste caso, se
materialmente, como tenho dito, se não abstêm dos bens dos naufragantes.
VI
Com esta
última advertência vos despido, ou me despido de vós, meus peixes. E para que
vades consolados do sermão, que não sei quando ouvireis outro, quero-vos
aliviar de uma desconsolação mui antiga, com que todos ficastes desde o tempo
em que se publicou o Levítico. Na lei eclesiástica ou ritual do Levítico,
escolheu Deus certos animais que lhe haviam de ser sacrificados; mas todos eles
ou animais terrestres ou aves, ficando os peixes totalmente excluídos dos
sacrifícios. E quem duvida que esta exclusão tão universal era digna de grande
desconsolação e sentimento para todos os habitadores de um elemento tão nobre,
que mereceu dar a matéria ao primeiro sacramento? O motivo principal de serem
excluídos os peixes, foi porque os outros animais podiam ir vivos ao
sacrifício, e os peixes geralmente não, senão mortos; e cousa morta não quer Deus
que se lhe ofereça, nem chegue aos seus altares. Também este ponto era muito
importante e necessário aos homens, se eu lhes pregara a eles. Oh quantas almas
chegam àquele altar mortas, porque chegam e não têm horror de chegar, estando
em pecado mortal! Peixes, dai muitas graças a Deus de vos livrar deste perigo,
porque melhor é não chegar ao sacrifício, que chegar morto. Os outros animais
ofereçam a Deus o ser sacrificados; vós oferecei-lhe o não chegar ao
sacrifício; os outros sacrifiquem a Deus o sangue e a vida; vós sacrificai-lhe
o respeito e a reverência.
Ah
peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor
me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo indignamente! Em tudo o que vos
excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a
minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não
ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com
a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu
quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade. Vós fostes criados por Deus,
para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me
para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que me criou. Vós não haveis de
ver a Deus, e podereis aparecer diante dele muito confiadamente, porque o não
ofendestes; eu espero que o hei-de ver; mas com que rosto hei-de aparecer
diante do seu divino acatamento, se não cesso de o ofender? Ah que quase estou
por dizer que me fora melhor ser como vós, pois de um homem que tinha as mesmas
obrigações, disse a Suma Verdade, que «melhor lhe fora não nascer homem»: Si
natus non fuisset homo ille. E pois os que nascemos homens, respondemos tão
mal às obrigações de nosso nascimento, contentai-vos, peixes, e dai muitas
graças a Deus pelo vosso.
Benedicite,
cete et omnia quae moventur in aquis, Domino: «Louvai, peixes, a Deus, os grandes e os
pequenos», e repartidos em dois coros tão inumeráveis, louvai-o todos
uniformemente. Louvai a Deus, porque vos criou em tanto número. Louvai a Deus,
que vos distinguiu em tantas espécies; louvai a Deus, que vos vestiu de tanta
variedade e formosura; louvai a Deus, que vos habilitou de todos os
instrumentos necessários à vida; louvai a Deus, que vos deu um elemento tão
largo e tão puro; louvai a Deus, que, vindo a este Mundo, viveu entre vós, e
chamou para si aqueles que convosco e de vós viviam; louvai a Deus, que vos
sustenta; louvai a Deus, que vos conserva; louvai a Deus, que vos multiplica;
louvai a Deus, enfim, servindo e sustentando ao homem, que é o fim para que vos
criou; e assim como no princípio vos deu sua bênção, vo-la dê também agora.
Amen. Como não sois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba o vosso Sermão
em Graça e Glória.
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