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segunda-feira, 2 de julho de 2007

O polêmico Exu: Deus ou Demônio? - Parte II

Já vimos na primeira parte o que Exu representa na mitologia africana. Agora, nossa missão é entender o que aconteceu com esse personagem com a sua chegada ao Brasil e como evoluiu seu contado com a cultura judaico-cristã.

Os europeus, quando tiveram seu primeiro contato com o Exu dos iorubás, cultuado pelos fons como Legba ou Elegbara imediatamente o identificaram com o diabo judaico-cristão e com Príapo, o deus fálico greco-romano. Primeiro, pelas suas qualificações morais, narradas pela mitologia dos orixás, pois Exu contraria as regras de conduta tradicionalmente aceitas pela sociedade; segundo, pelas representações materiais e os símbolos fálicos ligados a Exu. Exu tem um caráter violento, suscetível, astucioso, grosseiro, vaidoso e indecente. Os primeiros missionários que tiveram contato com essa personalidade ficaram espantados e assimilaram-no ao Diabo, fazendo de Exu o símbolo de toda a maldade e perversidade, em oposição à bondade e à pureza de Deus.

Dessa maneira, todos os escritos dos missionários e pesquisadores que tomaram contato com a cultura fon ou iorubá, nos séculos 18 e 19 sempre descreveram Exu com olhos ocidentais e cristãos. Desde então Exu foi impingido com o binômio pecaminoso: sexo e pecado, luxúria e danação, fornicação e maldade, do qual nunca se libertou. Hoje, apesar de uma certa volta às origens, é o orixá mais incompreendido e caluniado do panteão.

Dentro da mitologia africana, os homens habitam a Terra (Ayê) e os deuses (orixás), o Orum (céu). No entanto, os orixás não são deuses distantes, mas sim muito presentes na vida diária, existindo um contato permanente entre deuses e adoradores. Os homens cuidam da alimentação, das bebidas, das roupas e do divertimento dos deuses. Eles são parte da família, fundadores dos clãs, cujas origens se perdem no passado. Em troca desse cuidado todo, os orixás protegem, ajudam, dão conselhos e identidade aos seus descendentes humanos. Mortos ilustres também merecem o devido culto para manter sua lembrança viva na comunidade, e um dia irão renascer como um novo membro da família. Essa é a razão do sacrifício: alimentar toda a família, inclusive os mais distantes ancestrais, os pais e mães que estão na origem de tudo, afirmando que os laços da família estão amarrados.

Exu, sendo o mensageiro, tem o encargo de fazer essa comunicação. Exu leva as oferendas aos orixás e trás comunicações deles aos humanos. Ele é o porta-voz dos orixás e entre os orixás. Como os orixás interferem em tudo o que acontece neste mundo, nada aconteceria sem o trabalho deste mensageiro. Nada se faz sem ele, nenhuma mudança. Sendo os sacrifícios uma reafirmação da lealdade, solidariedade e retribuição entre os habitantes do Ayê e do Orum, sempre que um orixá é interpelado, Exu deve ser propiciado, já que é ele que possibilita essa comunicação. Essa idéia fez com que se pensasse que Exu não trabalha sem pagamento, o que contradiz o ideal cristão do trabalho caridoso, sem interesse nenhum, o que é comum nos santos católicos. Exu ficou conhecido como um mercenário.

Sendo mensageiro dos orixás, Exu sabe de tudo. Não há segredos para ele. É conhecedor de todos os feitiços, receitas e magias. Trabalhando para todos, não faz distinção entre os que deve prestar serviço. Isso inclui todas as divindades, ancestrais e humanos. Mas o que mais o distingue das outras divindades é o seu caráter transformador, quebrador de regras. Ele tem o poder de questionar todas as convenções, romper as regras e promover mudanças. É por isso que é temido, pois ele é o princípio do movimento, da transformação, não respeitando nenhum limite. Assim, tudo o que contraria a ordem estabelecida é um atributo seu. Ao mesmo tempo em que é o responsável pela manutenção do status quo, é o responsável por todas as inovações que ferem as tradições. É uma divindade, portanto, nada confiável, de caráter duvidoso, interesseiro e turbulento.

Para um africano tradicional, o sexo tem uma função social, que envolve a garantia da perpetuação da espécie, do clã e das cidades. Para que isso se efetive, é preciso ter muitas esposas, que possam gerar muitos filhos. Exu é o “patrono” da relação sexual, que gera filhos e dá continuidade à humanidade. De acordo com os africanos, nenhum homem pode ser feliz sem uma prole numerosa e a atividade sexual é decisiva neste sentido. Isso é representado nos símbolos fálicos que acompanham Exu. Por isso, foi criada uma imagem de um “demônio lascivo, libidinoso e carnal”.

Tudo isso contribuiu para que os cristãos enxergassem em Exu uma entidade demoníaca, pois afrontava todos os tabus da cultura ocidental, onde sexo é pecado. Quando a religião dos africanos começou a ser praticada no Brasil, ela se inseriu num contexto dualista de bem e mal, o que lhe deu um novo formato e um novo papel para Exu.

Essa concepção dualista de bem e mal, do virtuoso e do pecador não existia na África. Lá, como em diversas religiões politeístas, cada orixá tinha suas normas próprias, aplicáveis aos seus devotos, como acontece ainda hoje no candomblé. Não existia um código de normas aplicável a toda a comunidade, indistintamente. O cristianismo tem esse código, onde existe um código de ética universalizado, operando com as noções de pecado, bem e mal. O bem é simbolizado por Deus, nas suas três pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo) e o mal é personificado no Diabo, em suas diversas manifestações. No sincretismo o lado do bem foi preenchido pelos orixás, onde Oxalá ganhou o status de Jesus Cristo, Olorum, o intangível deus africano, ganhou o status de Deus Todo Poderoso, e os demais orixás ganharam a identidade dos diversos santos do panteão católico. Nessa camisa de força, muitos orixás perderam diversos atributos, principalmente aqueles que se referiam à sexualidade, coisa considerada pecaminosa na teologia cristã. Inclusive as mães Oxum, Iemanjá e Iansã ficaram praticamente assexuadas neste sincretismo, e seus atributos femininos passaram a compor a Pomba-Gira, Exu feminilizado que ocupa o outro lado do mal, chefiada por Exu.

No sincretismo cristão-africano, quem melhor se enquadra para compor com Oxalá o conceito de deus-diabo, pecado-salvação, céu-inferno? Em troca desse favor aos jesuítas, ganhou de presente chifres, rabo, pés de bode, próprios dos demônios católicos da Idade Média. O ápice da carreira de Exu como o senhor do inferno aconteceu com o surgimento da umbanda em 1919. Mesmo conservando o panteão africano e o transe, a umbanda reproduziu sem fidelidade e de uma maneira muito kardecista, que já é fortemente influenciada pelo cristianismo, as concepções africanas de seus deuses. Começou, então, a praticar a caridade, uma concepção estranha ao candomblé. Substituindo a idéia do tabu pela idéia do pecado, a umbanda desejou ser moderna, ética, européia e branca, apesar das raízes negras, que sempre procurou apagar o máximo. A umbanda adotou o dualismo cristão de bem e mal, incorporando a versão católica do mal, mas não se dispôs a combatê-lo. Apesar de trabalhar para o “bem”, dissimuladamente criou um universo paralelo, negado, mas sem contar com os mecanismos sociais para o controle da moralidade que existiam na sociedade africana tradicional.

Esse território foi chamado de quimbanda, e passou a ser o domínio de Exu. Neste lado da umbanda, tudo aquilo que os pretos-velhos, caboclos e iaras se negam a fazer, por razões morais, Exu faz sem pestanejar. A quimbanda, apesar de ser a negação ética da umbanda, faz contraponto aos “santificados” orixás. Ela escondeu Exu, para poder operar livremente. A maldição imposta a Exu pelos missionários e viajantes cristãos na África foi, finalmente, completada, no Brasil, nos séculos 19 e 20.

Como a umbanda se destina a cultuar espíritos humanos, que um dia viveram na terra, são eles os responsáveis pelas celebrações. Assim como os caboclos foram um dia índios, de reconhecida bravura e bom-caráter, os pretos-velhos foram negros escravos dóceis, sábios e caridosos, Exu, na quimbanda, apesar do status de Diabo, era cultuado como homens de questionável conduta, como assaltantes, assassinos, ladrões, vagabundos, bêbados, e toda a espécie de gente ruim. Como a concepção católica acredita que a mulher é a fonte de todo o pecado, desde Eva, responsável por nossa saída do paraíso, Exu foi feito mulher, também. O lado sexual do pecado. Elas são mulheres perdidas, prostitutas, companheiras dos bandidos, cafetinas, etc. Pronto, foi terminada a criação do que hoje chama de Exu. Este personagem, quando incorporado, veste-se de capa vermelha e preta, bebe cachaça, fuma charutos, segura um tridente medieval do capeta, se torce todo, imitando os cascos de bode do Diabo, diz palavrão. Não se identifica mais o traquinas e brincalhão mensageiro dos orixás africanos. Tanto na África como no candomblé, Exu tem uma série de nomes, venerados através de diferentes invocações, de acordo com os seus locais geográficos ou atributos próprios. Identificamos diversos desse nomes, cultuados em diversas partes do Brasil: Iangui, Lodê, Elegbara, Bará, Agbô, Igbá Quetá, Ocotó, Obassim, Eleru, Lonã, Adague, Enugbarijó, Legba, Icorita Metá, Olobé, Elebó, Olodu, Elepô, Iná, Ajelu, Lalu, Tiriri, Aquessam, Alaketu, Eleiembó, Loroiê, Barabô, Marabô, Sinza Muzila, Emberequetê, Jelebara, Mavambo. São nomes que indicam as funções de Exu: mensageiro, transportador, transformador. Estes nomes, no entanto, estão ausentes na umbanda e nos candomblés em que Exu é associado ao Diabo. Neste caso se usa outros nomes, sempre associados a demônios da mitologia judaico-cristã: a entidade suprema da “esquerda” é o Diabo Maioral, ou Exu Sombra; Exu Marabô/Put Satanaika; Exu Mangueira/Agalieraps; Exu-Mor/Belzebu; Exu Rei das Sete Encruzilhadas/Astaroth; Exu Tranca Rua/Tarchimache; Exu Veludo/Sagathana; Exu Tiriri/Fleuruty; Exu dos Rios/Nesbiros e Exu Calunga/Syrach; Exu Ventania/Baechard; Exu Quebra Galho/Frismost; Exu das Sete Cruzes/Merifild; Exu Tronqueira/Clistheret, Exu das Sete Poeiras/Silcharde; Exu Gira Mundo/Segal; Exu das Matas/Hicpacth; Exu das Pedras/Humots; Exu dos Cemitérios/Frucissière; Exu Morcego/Guland; Exu das Sete Portas/Sugat; Exu da Pedra Negra/Claunech; Exu da Capa Preta/Musigin; Exu Marabá/Huictogaras; e Exu-Mulher, Exu Pombagira, simplesmente Pombagira ou diabo Klepoth. Há também os Exus que trabalham sob as ordens do orixá Omulu (Xapanã), o senhor dos cemitérios: Exu Caveira/Sergulath e Exu da Meia-Noite/Hael. Os nomes mais conhecidos são Exu Tata Caveira/Proculo; Exu Brasa/Haristum; Exu Mirim/Serguth; Exu Pemba/Brulefer; e Exu Pagão/Bucons. (Conforme Fontennelle, s/d; Bittencourt, 1989; Omolubá, 1990).

Entre os nomes de Pomba-gira temos: Pomba-gira Rainha, Maria Padilha, Pomba-gira Sete Saias, Maria Molambo, Pomba-gira da Calunga, Pomba-gira Cigana, Pomba-gira do Cruzeiro, Pomba-gira Cigana dos Sete Cruzeiros, Pomba-gira das Almas, Pomba-gira Maria Quitéria, Pomba-gira Dama da Noite, Pomba-gira Menina, Pomba-gira Mirongueira, Pomba-gira Menina da Praia. É notória em casos de amor, e tem poder de ajudar qualquer tipo de união amorosa e sexual.

A expansão da umbanda por todo o país, verificada a partir do início do século 20, tornou maior o contato (ou contágio?) entre essas doutrinas religiosas. O candomblé de orixás, que já havia inserido em seu contexto o culto aos caboclos, não tardou em inserir Exus e Pomba-giras. Atualmente, terreiros de candomblé sem exus e pomba-giras pode-se contar nos dedos.

Neste tipo de piada religiosa que se tornou o degrau mais baixo da decadência de Exu desde que foi sincretizado com o Diabo, o culto aos orixás é pouco significativo, onde se faz uma ou outra festa para os orixás durante o ano, e o resto do tempo são feitas festas para fazer imitações degradadas do orixá mensageiro. A transformação de Exu em guia da quimbanda o aproximou bastante dos mortais, mas o fez perder o status de divindade. Ele fez o caminho inverso do que usualmente ocorre em religiões de antepassados, em que os homens são divinizados depois da morte.

Naturalmente, em certos terreiros de candomblé que observam as raízes africanas, Exu está bem próximo de sua verdadeira função. O mesmo não acontece quando olhamos para a imagem de Exu cultivada em religiões oponentes. As religiões evangélicas, principalmente, que usam o rádio e a televisão para divulgar seus ensinamentos, o tratam como o próprio Diabo em pessoa. Essas religiões exploram com muita facilidade essa imagem, atribuindo a Exu e aos cultos afro-brasileiros todos os males que afligem os humanos. Todos os males, inclusive o desemprego, a miséria, a crise familiar, entre outras aflições que atingem os cotidianos das pessoas, sobretudo os pobres, são considerados pelos neopentecostais como tendo origem no diabo, identificado preferencialmente com as entidades afro-brasileiras. O desemprego, por exemplo, ao invés de ser considerado como decorrente das injustiças sociais e problemas da estrutura da sociedade, como explicariam os católicos das comunidades eclesiais de base, é visto pela Igreja Universal como resultante da possessão de alguma entidade como Exu Tranca Rua ou Exu Sete Encruzilhadas.

Entre os católicos, a antiga inimizade com as religiões afro-brasileiras, reavivou-se com a Renovação Carismática. Este movimento, que divide com o pentecostalismo muitas características, inclusive a intransigência para com outras religiões, o catolicismo carismático voltou a bater na tecla de que as divindades e entidades afro-brasileiras não passam de manifestações do diabo, que se apresenta a todos, sem disfarce, nas figuras de exus e pomba-giras. Está de volta a velha perseguição católica aos cultos afro-brasileiros, agora sem contar com o braço armado do estado, cuja polícia, pelo menos até o início da década de 1940, prendia praticantes e fechava terreiros, mas podendo se valer de meios de propaganda igualmente eficazes. Exu, o Diabo, mobiliza e legitima, aos olhos cristãos, o ódio religioso contra a umbanda e o candomblé, corporificado em verdadeira guerra religiosa de evangélicos contra afro-brasileiros.

A mídia colabora muito para esse resultado, não sendo raro os casos em que associam casos de magia negra e assassinatos com feiticeiros que se dizem sacerdotes das religiões afro-brasileiras. Já no interior do africanismo, temos um movimento de volta às raízes, numa espécie de retorno ao verdadeiro papel dos orixás e de Exu. Nos terreiros que estão fazendo este retorno, Exu é tratado como um orixá igual aos demais, buscando acabar com esse sincretismo. Como no candomblé cada membro do culto deve ser iniciado para um orixá específico, que é aquele considerado o seu antepassado mítico, sua origem de natureza divina. Os que eram identificados pelo jogo de búzios como filhos de Exu estavam sujeitos a ser reconhecidos como filhos do diabo e, por isso, acabavam sendo iniciados para outro orixá, especialmente para Ogum Xoroquê, uma qualidade de Ogum com profundas ligações com o mensageiro. Até pouco tempo, eram raros e notórios os filhos de Exu iniciados para Exu. Estranhamente, o “batuque”, culto africano praticado no sul do país, esse sincretismo não existiu, sendo que Bará (Exu) sempre foi considerado um orixá igual aos demais, com pouquíssima identificação com o diabo, exceto em terreiros que praticavam umbanda e “batuque”. Sempre observei uma grande pureza nas práticas da “nação dos orixás”. Atualmente, tudo isso está mudando à medida que o movimento de desvinculação dos orixás com o conceito maniqueísta cristão e já encontramos filhos de Exu orgulhosos de sua origem. Exu está perdendo a condição de diabo que lhe foi colocada pelos cristãos. Assim, ele está tendo chance de voltar a ser o orixá mensageiro, que tem o poder da transformação e do movimento, estradeiro, freqüentador das encruzilhadas e guardiões das portas das casas. Orixá brincalhão, controvertido, questionador, nem santo, nem demônio.

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